domingo, 16 de janeiro de 2011

ADOLFO BEZERRA DE MENEZES



Apontamentos biobibliográficos
Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti nasceu em 29 de agosto de 1831
na fazenda Santa Bárbara,  no lugar chamado Riacho das Pedras,  município
cearense de Riacho do Sangue, hoje Jaguaretama, estado do Ceará.
Descendia  Bezerra  de  Menezes  de  antiga  família,  das  primeiras  que
vieram ao território cearense.  Seu avô paterno,  o coronel Antônio Bezerra de
Souza e Menezes tomou parte da Confederação do Equador, e foi condenado à
morte,  pena comutada em degredo perpétuo para o interior do Maranhão,  e
que não foi cumprida porque o coronel faleceu a caminho do desterro, sendo
seu corpo sepultado  em Riacho do Sangue. Seus  pais,  Antônio Bezerra  de
Menezes,  capitão das antigas milícias e tenente-coronel  da Guarda Nacional,
desencarnou em Maranguape, no dia 29 de setembro de 1851, de febre amarela;
a mãe,  Fabiana Cavalcanti  de Alburquerque,  nascida em 29 de setembro de
1791,  desencarnou em Fortaleza,  aos 91 anos de idade,  perfeitamente lúcida,
em 5 de agosto de 1882.
Desde  estudante,  o  itinerário  de  Bezerra  de  Menezes  foi  muito
significativo. Em 1838, no interior do Ceará, conheceu as primeiras letras, em
escola da Vila do Frade, estando à altura do saber de seu mestre em 10 meses.
Já na Serra dos Martins, no Rio Grande do Norte, para onde se transferiu
em 1842 com a família, por motivo de perseguições políticas,  aprendeu latim
em dois anos, a ponto de substituir o professor.
Em 1846,  já em Fortaleza,  sob as  vistas  do irmão mais  velho,  o Dr.
Manoel Soares da Silva Bezerra, conceituado intelectual e líder católico, efetuou
os  estudos  preparatórios,  destacando-se  entre  os  primeiros  alunos  do
tradicional Liceu do Ceará.
Bezerra queria tornar-se médico, mas o pai, que enfrentava dificuldades
financeiras, não podia custear-lhe os estudos. Em 1851, aos 19 anos, tomou ele a
iniciativa de ir para o Rio de Janeiro, a então capital do Império, a fim de cursar
medicina, levando consigo a importância de 400 mil réis, que os parentes lhe
deram para ajudar na viagem.
No  Rio  de  Janeiro,  ingressou,  em 1852,  como  praticante  interno  no
Hospital da Santa Casa de Misericórdia.
Para poder estudar, dava aula de filosofia e matemática. Doutorou-se em
1856 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Em março  de  1857,  solicitou  sua  admissão  no  Corpo  de  Saúde  do
Exército, sentando praça em 20 de fevereiro de 1858, como cirurgião tenente.
Ainda em 1857,  candidatou-se ao quadro dos  membros  titulares  da
Academia Imperial de Medicina com a memória "Algumas considerações sobre
o cancro, encarado pelo lado do seu tratamento", sendo empossado em sessãode 1º de junho. Nesse mesmo ano, passou a colaborar na "Revista da Sociedade Físico-Química".
Em 6 de novembro de 1858,  casou-se com a Sra.  Maria Cândida de
Lacerda, que desencarnou no início de 1863, deixando-lhe um casal de filhos.
Em 1859  passou  a  atuar como  redator  dos  "Anais  Brasilienses  de
Medicina", da Academia Imperial de Medicina, atividade que exerceu até 1861.
Em 21 de janeiro de 1865,  casou-se,  em segunda núpcias  com Dona
Cândida Augusta de Lacerda Machado, irmã materna de sua primeira esposa,
com quem teve sete filhos.
Já  em franca  atividade  médica,  Bezerra  de  Menezes  demonstrava  o
grande coração que iria semear, até o fim do século, sobretudo entre os menos
favorecidos da fortuna, o carinho, a dedicação e o alto valor profissional.
Foi justamente o respeito e o reconhecimento de numerosos amigos que
o levaram à política,  que ele,  em mensagem ao deputado Freitas Nobre,  seu
conterrâneo e admirador,  definiu como “a ciência de criar o bem de todos”.
Elegeu-se vereador para Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1860,
pelo Partido Liberal.
Quando  tentaram impugnar  sua  candidatura,  sob  a  alegação  de  ser
médico  militar,  demitiu-se  do  Corpo  de  Saúde  do  Exército.  Na  Câmara
Municipal, desenvolveu grande trabalho em favor do “Município Neutro” e na
defesa dos humildes e necessitados.
Foi  reeleito com simpatia geral  para o período de 1864-1868.  Não se
candidatou ao exercício de 1869 a 1872.
Em 1867,  foi  eleito  deputado-geral  (correspondente  hoje  a  deputado
federal) pelo Rio de Janeiro. Dissolvida a Câmara dos Deputados em 1868, com
a  subida  dos  conservadores  ao  poder,  Bezerra  dirigiu suas  atividades  para
outras realizações que beneficiassem a cidade.
Em  1873,  após  quatro  anos  afastados  da  política,  retomou  suas
atividades, novamente como vereador.
Em 1878, com a volta dos liberais ao poder, foi novamente eleito à
Câmara dos Deputados, representando o Rio de Janeiro, cargo que exerceu até
1885.
Neste período, criou a Companhia de Estrada de Ferro Macaé a Campos,
que veio proporcionar-lhe pequena fortuna, mas que, por sua vez, foi também
o sorvedouro dos seus bens, deixando-o completamente arruinado.
Em 1885, atingiu o fim de suas atividades políticas. Bezerra de Menezes
atuou 30 anos na vida parlamentar. Outra missão o aguardava, esta mais nobre
ainda, aquela de que o incumbira Ismael,  não para o coroar  de glórias, que
perecem, mas para trazer sua mensagem à imortalidade.O Espiritismo, qual novo maná celeste,  já vinha atraindo multidões de crentes,  a todos saciando na sua missão de consolador.  Logo que apareceu a
primeira tradução brasileira de “O Livro dos Espíritos”, em 1875, foi oferecido
a Bezerra de Menezes um exemplar da obra pelo tradutor, Dr. Joaquim Carlos
Travassos, que se ocultou sob o pseudônimo de Fortúnio.
Foram palavras do próprio Bezerra de Menezes, ao proceder a leitura de
monumental  obra:  “Lia,  mas não encontrava nada que fosse novo para meu
espírito,  entretanto tudo aquilo era novo para mim [...].  Eu já tinha lido ou
ouvido  tudo  o  que  se  achava  no  Livro  dos  Espíritos  [...].  Preocupei-me
seriamente com este fato maravilhoso e a mim mesmo dizia: parece que eu era
espírita inconsciente, ou mesmo, como se diz vulgarmente, de nascença”.
Contribuíram  também,  para  torná-lo  um  adepto  consciente,  as
extraordinárias curas que ele conseguiu, em 1882, do famoso médium receitista
João Gonçalves do Nascimento.
Mais  que  um adepto,  Bezerra  de  Menezes  foi  um defensor  e  um
divulgador  da  Doutrina  Espírita.  Em  1883,  recrudescia,  de  súbito,  um
movimento contrário ao Espiritismo e,  naquele mesmo ano,  fora lançado por
Augusto Elias da Silva o “Reformador”,  órgão oficial  da Federação Espírita
Brasileira e o periódico mais antigo do Brasil,  ainda em circulação.  Elias da
Silva consultava Bezerra de Menezes sobre as melhores diretrizes a seguir em
defesa dos ideais espíritas.  O venerável  médico aconselhava-o a contrapor-se
ao ódio, o amor, e a agir com discrição, paciência e harmonia.
Bezerra não ficou,  porém,  no conselho teórico.  Com as iniciais A.  M.,
principiou a colaborar com o “Reformador”,  emitindo comentários judiciosos
sobre o Catolicismo.
Fundada a Federação Espírita Brasileira em 1884,  Bezerra de Menezes
não quis inscrever-se entre os fundadores,  embora fosse amigo de todos os
diretores e sobremaneira, admirado por eles.
Embora sua participação tivesse sido marcante até então, somente em 16
de agosto de 1886, aos 55 anos de idade, Bezerra de Menezes, perante grande
público, em torno de 1.500 a 2.000 pessoas, no salão de Conferência da Guarda
Velha,  em longa  alocução,  justificou a  sua  opção  definitiva  de  abraçar  os
princípios da consoladora doutrina.
Daí  por  diante  Bezerra  de  Menezes  foi  o  catalisador  de  todo  o
movimento  espírita  na  Pátria  do  Cruzeiro,  exatamente  como  preconizara
Ismael. Com sua cultura privilegiada, aliada ao descortino de homem público e
ao inexcedível amor ao próximo, conduziu o barco de nossa doutrina por sobre
as águas atribuladas pelo iluminismo fátuo, pelo cientificismo presunçoso, que
pretendia deslustrar o grande significado da Codificação Kardequiana.
Presidente  da FEB em 1889,  ao espinhoso cargo foi  reconduzido  em
1895, quando mais se agigantava a maré da discórdia e das radicalizações no
meio espírita, nele permanecendo até 1900, quando desencarnou. O Dr.  Bezerra de Menezes foi  membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, da Sociedade Físicoquímica, sócio e benfeitor da Sociedade Propagadora das Belas-Artes, membro
do  Conselho  do  Liceu  de  Artes  e  presidente  da  Sociedade  Beneficente
Cearense.
Escreveu em jornais como “O Paiz”,  redigiu “Sentinela da Liberdade”,
os “Anais Brasilienses de Medicina”, colaborou na “Reforma”, na “Revista da
Sociedade Físico-química” e no “Reformador”.  Utilizava os pseudônimos de
Max e Frei Gil.
O dicionarista J. F. Velho Sobrinho alinha extensa bibliografia de Bezerra
de Menezes,  relacionando para mais de quarenta obras escritas e publicadas.
São teses, romances, biografias, artigos, estudos, relatórios, etc.
Bezerra de Menezes desencarnou em 11 de abril de 1900, às 11h30min.,
tendo ao lado a dedicada companheira de tantos anos, Cândida Augusta.
Morreu pobre, embora seu consultório estivesse cheio de uma clientela
que nenhum médico queria;  eram pessoas pobres,  sem dinheiro para pagar
consultas.  Foi  preciso  constituir-se  uma  comissão  para  angariar  donativos
visando a possibilitar a manutenção da família. A comissão fora presidida por
Quintino Bocayuva.
Por  ocasião de sua morte,  assim se pronunciou Leon Denis,  um dos
maiores discípulos de Kardec: “Quando tais homens deixam de existir, enlutase não somente o Brasil, mas os espíritas de todo o mundo”.
Fonte:  Texto  incluído  nas  obras  que  integram a  Coleção  Bezerra  de
Menezes, publicada pela FEB.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Gregório IX

Achei na rede
Bastante elucidativo o ensaio que se segue porque mostra em detalhes alguns aspectos da temível Santa inquisição instituída pela Igreja Católica Apostólica Romana na Idade Média que, com a desculpa de combater várias heresias que punham em causa a legitimidade tanto do poder eclesiástico como do poder civil, cometeu toda espécie de crime hediondo que se possa imaginar em toda sua história em nome da fé.
antromsil
O início da Santa inquisição
clip_image001Em uma época em que o poder religioso confundia-se com o poder real, o Papa Gregório IX*, em 20 de abril de 1233 editou duas bulas que marcam o início da Inquisição, instituição da Igreja Católica Romana que perseguiu, torturou e matou vários de seus inimigos, ou quem ela entendesse como inimigo, acusando-os de hereges, por vários séculos. A bula "Licet ad capiendos", a qual verdadeiramente marca o início da Inquisição, era dirigida aos dominicanos, inquisidores,  e era do seguinte teor: "Onde quer que os ocorra pregar estais facultados, se os pecadores persistem em defender a heresia apesar das advertências, a privar-los para sempre de seus benefícios espirituais e proceder contra eles e todos os outros, sem apelação, solicitando em caso necessário a ajuda das autoridades seculares e vencendo sua oposição, se isto for necessário, por meio de censuras eclesiásticas inapeláveis"
No mesmo ano, foi nomeado inquisidor da região de "Loira",  Roberto el Bougre, que com saques e execuções em massa, logo após dois anos foi promovido a responsável pela inquisição em toda a França. Em 1252, o Papa Inocêncio IV editou a bula "Ad extirpanda", a qual institucionalizou o Tribunal da Inquisição e autorizava o uso da tortura. O poder secular era obrigado a contribuir com a atividade do tribunal da igreja.
Tribunal da Inquisição, Goya
Nos processos da inquisição a denúncia era prova de culpabilidade, cabendo ao acusado a prova de sua inocência. O acusado era mantido incomunicável; ninguém, a não ser os agentes da Inquisição, tinha permissão de falar com ele; nenhum parente podia visitá-lo. Geralmente ficava acorrentado. O acusado era o responsável pelo custeio de sua prisão.
O julgamento era secreto e particular, e o acusado tinha de jurar nunca revelar qualquer fato a respeito dele no caso de ser solto. Nenhuma testemunha era apresentada contra ele, nenhuma lhe era nomeada; os inquisidores afirmavam que tal procedimento era necessário para proteger seus informantes.
A tortura só era aplicada depois que uma maioria do tribunal a votava sob pretexto de que o crime tornara-se provável, embora não certo, pelas provas. Muitas vezes a tortura era decretada e adiada na esperança de que o medo levasse à confissão.
A confissão podia dar direito a uma penalidade mais leve e se fosse condenado à morte apesar de confesso, o sentenciado podia "beneficiar-se" com a absolvição de um padre para salvá-lo do inferno.
A tortura também podia ser aplicada para que o acusado indicasse nomes de companheiros de heresia. As testemunhas que se contradiziam podiam ser torturadas para descobrir qual delas estava dizendo a verdade.  
Não havia limites de idade para a tortura, meninas de 13 anos e mulheres de 80 anos eram sujeitas à tortura. As penas impostas pela inquisição iam desde simples censuras (leves ou humilhantes), passando pela reclusão carcerária (temporária ou perpétua) e trabalhos forçados nas galeras, até a excomunhão do preso para que fosse entregue às autoridades seculares e levado à fogueira.
Castigos esses normalmente acompanhados de flagelação do condenado e confiscação de seus bens em favor da igreja (é claro! – observação minha). Podia haver privação de herança até da terceira geração de descendentes do condenado.
Obrigação de participar de cruzadas também foi pena durante o século XIII. Na prisão perpétua, considerada um gesto de misericórdia, o condenado sobrevivia a pão e água e ficava incomunicável. Nem o processo nem a pena suspendiam-se com a morte, pois a inquisição mandava "queimar os restos mortais do herege e levar as cinzas ao vento", confiscando as propriedades dos herdeiros. Havia também, muito comum na inquisição portuguesa e na espanhola, a execução em efígie, onde era queimada a imagem do condenado, quando este fugia e não era encontrado. Livros também eram levados à fogueira.
O inquisidor Nicolau Eymerich, em 1376, escreveu o "Directorium Inquisitorum" (Manaul dos Inquisidores), onde encontramos conceitos, normas processuais a serem seguidas, termos e modelos de sentenças a serem utilizadas pelos inquisidores:
Fontes: - Historia de la Inquisicion, I.Grigulevich, Ed.Progresso, 1976
- A História da Civilização, Will Durant, vol. VI, Ed. Record, 2ªed., 1957
- Mirador Intarnacional, Ed. Milano, 1970
O Papa Gregório IX, nascido Ugolino di Anagni (Anagni, c. 1160 — Roma, 22 de Agosto de 1241) foi Papa de 1227 a 1241.
Filho do conde de Segni e parente do Papa Inocêncio III, estudou direito em Paris e Bolonha. Feito cardeal em 1198, tornou-se cardeal-bispo de Óstia em 1206. Foi um importante incentivador dos dominicanos e dos franciscanos, tendo sido amigo pessoal do próprio São Francisco.
Organizou a Inquisição Pontifícia com o objetivo de reprimir as heresias, com a promulgação da bula "Licet ad capiendos" em 20 de abril de 1233. Canonizou são Francisco de Assis, são Domingos de Gusmão e santo António de Lisboa. Fundou a Santa Inquisição. Está sepultado na Basílica de São Pedro, na Cidade do Vaticano”.

domingo, 2 de janeiro de 2011

A melhor RELIGIÃO

A melhor RELIGIÃO
"A que mais te aproxima de Deus"


No intervalo de uma mesa-redonda sobre religião e paz entre os povos, na qual ambos participávamos (Leonardo Boff e Dalai Lama), eu, maliciosamente, mas também com interesse teológico, lhe perguntei em meu inglês "capenga":

- Santidade, qual é a melhor religião?

Esperava que ele dissesse:
É o budismo tibetano ou são as religiões orientais, muito mais antigas do que o cristianismo.

O Dalai Lama fez uma pequena pausa, deu um sorriso, me olhou bem nos olhos - o que me desconcertou um pouco,  por que eu sabia da malícia contida na pergunta - e afirmou:

"A melhor religião é a que mais te aproxima de Deus. É aquela que te faz melhor."

Para sair da perplexidade diante de tão sábia resposta, voltei a perguntar:
- O que me faz melhor?

Respondeu ele:
"Aquilo que te faz mais compassivo (e aí senti a ressonância tibetana, budista, taoísta de sua resposta), aquilo que te faz mais sensível, mais desapegado, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável...
A religião que conseguir fazer isso de ti é a melhor religião..."

Calei, maravilhado, e até os dias de hoje estou ruminando sua resposta sábia e irrefutável. (LEONARDO BOFF)

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LEONARDO BOFF - Doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. É doutor honoris causa em Política pela universidade de Turim (Itália) e em Teologia pela universidade de Lund (Suécia), é autor de livros nas áreas de Teologia, Ecologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.

Jornal dos Espíritos - o seu jornal espírita na internet

sábado, 1 de janeiro de 2011

A CAUSA FINAL



O Livro dos Espíritos inicia-se com uma definição de Deus, considerando-O como causa primária de todas as coisas. Naturalmente, não temos aí uma verdadeira definição, porque esta implica numa descrição, ainda que sumária, do objeto definido, e não se pode definir Deus. Deus é indefinível. É, portanto, uma noção que se oferece, para que se possa ter, na Divindade, o ponto inicial de toda a estrutura do Espiritismo. A Doutrina não procurou descrever a Deus, salvo através de atributos gerais que pudessem orientar sobre tudo aquilo que Deus não poderia deixar de ser, sem deixar de ser Deus, como assinalou Kardec.

A admissão dessa noção primeira norteia todo o desenvolvimento da Doutrina, e o fato de não poder dar uma definição completa em nada depõe contra ela, pois também numa ciência positiva como a matemática é preciso partir de um ponto, considerado sem dimensão, para que se possa erguer o edifício da geometria, ou de pressupostos contraditórios - duas paralelas se encontram no infinito; por um ponto tomado fora de uma reta não se pode fazer passar nenhuma paralela a esta; pode fazer passar-se uma infinidade de paralelas a esta. O próprio raciocínio utilizado de que não há efeito sem causa, que nos leva a reconhecer a necessidade de uma causa inteligente para justificar os efeitos, ou seja, a natureza e o homem, apesar da crítica de Kant, não pode ser colocado de lado como um instrumento de trabalho da filosofia, mesmo porque o que caracteriza esta é exatamente a natureza da busca permanente das causas primárias e últimas, a curiosidade no desvendar os mistérios do Universo e do Homem, e assim a transposição do conceito de causa do conhecido para o desconhecido segue o ritmo do que se vê na própria ciência física e na astronomia, quando se procura explicar certas perturbações no microcosmo e no macrocosmo pela presença de astros ainda desconhecidos. É um raciocínio que se faz por inferência, pois.

Se é certo que não podemos apresentar uma prova insofismável da existência de Deus, porque Ele não se encontra dentro da categoria dos objetos demonstráveis, é, todavia, certo que o sentimento de sua existência é inato ao homem e perde-se na noite dos tempos. Como poderia ter este surgido na alma humana? Teria bastado o abismo do desconhecido, a expectação ante os fenômenos naturais, o medo? Pode o homem especular quanto deseje, mas não poderá negar que, enraizado na sua própria natureza, se encontra mais que medo, temor, admiração ante a grandiosidade da Natureza: existe um sentimento que denuncia a presença de Deus em cada criatura, justificando o sentimento inato de sua existência, ligação e orientação final no percurso de retomo, atraído que se encontra todo o Universo pelo centro que é Deus.

também não se pode desconsiderar que os cientistas até o presente não conseguiram despistar a ciência cosmológica do reconhecimento de um ato inicial de criação, porque se houve um momento inicial a que, ironicamente, denominou-se de big-bang”, tem-se de admitir que, nada, ao menos do que se conhece, existia, e este antes não só foge à compreensão humana, mas induz a considerar a existência de um momento criador, quando tudo começou para que um dia o homem pudesse existir. Nem a teoria de um universo estacionário que, aparentemente, procura fugir ao ato criador consegue explicar a existência do universo, no máximo traduzindo-se no apaziguamento da consciência, se não na transformação do universo em um novo deus”.

consideremos um outro lado: O Livro dos Espíritos não conceitua Deus como sendo a causa final de todas as coisas, mas é, evidentemente, o que decorre de toda a Doutrina”. A razão, o objetivo final de tudo o que ocorre, é sempre determinado pelo alcance de um alvo único - Deus, que assim não foi só o impulsionador primeiro, mas é o ponto de atração de todo o universo: todas as coisas, todos os seres estão Nele centrados e dirigidos por Ele. O Evangelho revela, de modo simples, este unidirecionamento do universo quando recolhe as palavras de Jesus de que nenhum cabelo cairia sem a vontade do Pai. Não está aí a revelação deste sentido do universo, não é o reconhecimento de um comando, de uma direção? E noa podia deixar de ser assim num universo evolucionário, pois a evolução se dá sempre numa determinada direção para atingir um determinado alvo. Portanto, não podemos esquecer que temos em Deus não somente o princípio inteligente a impulsionar a marcha evolutiva, mas que temos nele, igualmente, a causa de atração de todo o universo que se apresente unidirigido.

A que vem isto? Por que tais considerações que poderiam parecer dispensáveis? São perguntas que naturalmente podem ser colocadas pelos que as lerem. À primeira vista, inexistiriam razões para fazê-las, porém, a partir delas, gostaria de chamar a atenção de que o fato de nos voltarmos, de modo peremptório, para o ato criador, até deslumbrados com as conquistas que vai fazendo a ciência no desvendamento dos mistérios cosmogônicos, tem desviado a atenção dos indivíduos de observar a direção da própria vida, a condução dos próprios passos. O que quero dizer é que, geralmente, o homem se volta para um Deus criador, colocando-O a uma distância infinita, e, por isso mesmo, desconhece sua presença, sua direção, relutando contra sua atração. Não parece certo reconhecer que, se tivéssemos uma visão mais correta da presença de Deus como o supremo objetivo da vida, outra seria a nossa conduta, outro o nosso comportamento? Não sei se, pelo fato da civilização cristã ter sido influenciada durante muito tempo por Aristóteles, diretamente ou via São Tomás de Aquino, a sobrevivência de certos conceitos perdura no mundo ocidental, embora não possamos culpar o doutor da Igreja. Agimos ou não, em nossas vidas, como o filósofo estagirita, ou seja, admitimos um Deus como primum mobile, mas, do mesmo modo que ele o afastou de qualquer influência no universo existente, nós também costumamos afastá-Lo de nossas vidas? É claro que não falo de um afastamento formal. De modo algum; ainda vemos pessoas persignarem-se diante dos santos e das igrejas, ajoelharem-se na via pública a reverenciar Alá voltadas para Meca, celebrarem o Shabat com todo o ritual e participarem de reuniões e reuniões mediúnicas, e doutrinárias, num esforço, talvez, de inscrever-se em algum Guiness Book - o livro dos recordes. Refiro-me à questão essencial da aceitação de Deus na própria vida, em seu direcionamento, em conformidade com as leis divinas. Mesmo no campo espírita, infelizmente, não podemos dizer que temos feito muita coisa melhor que os outros. É preciso não confundir o conhecimento revelado pelos Espíritos, o conhecimento doutrinário, as perspectivas que estes conhecimentos abrem para o ser humano, com a atitude do espírita individualmente, nem com o movimento espírita como conjunto.

Chega-se à Doutrina, toma-se conhecimento de uns tantos princípios, inscreve-se o indivíduo como sócio contribuinte de uma ou mais sociedades, com o pagamento de uma pequena mensalidade de praxe, às vezes se dispõe à participação em algum movimento social patrocinado pela Doutrina, mas... Este mas ou porém diz sempre respeito a uma série de coisas que o indivíduo resolve não abrir mão. Realmente a sua natureza não mudou, ou modificou-se, em fatores que eram essenciais. Assim, admita-se ou não, Deus está colocado à parte da vida, pois apesar de ter gerado o universo, nós teimamos em impedir que Ele recrie a nossa natureza, ou seja, utilizamos mal o nosso livre-arbítrio, desconhecendo que os piores inimigos não são os outros, não são os obsessores, mas nós próprios, que abrimos canais extensos à ação do mal.

Que aconteceria se atentássemos para o fato de que Deus é realmente o objetivo da vida humana e que a marcha evolutiva nele se consuma?” Que aconteceria se o homem passasse a agir consoante este entendimento? Os nossos males não são derivados da disparidade entre o nosso discurso e os nossos atos? Consideremos o fato de que temos, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, um roteiro de conduta cristã dirigido para homens comuns, e não para santos. Ali está o básico, e eu gostaria de dizer, o indispensável, para que se possa ser reconhecido como um verdadeiro espírita, verdadeiro cristão, que, como disseram os Espíritos, é a mesma coisa. Temos, portanto, um manual prático de como dirigir a vida consoante as leis divinas. Toda vez que alguém se inicia no Espiritismo com a recomendação de praticá-lo, se desejasse ser espírita. Não seria demais, devemos enfatizar a questão. A única dificuldade que vejo não está no preço do livro, nos custos que isto poderia acarretar, mesmo porque o grande esforço de divulgação das editoras tem sempre deixado o Evangelho ao alcance das bolsas; a única dificuldade, repito, seria saber quem teria autoridade suficiente para a entrega e a recomendação.

Tal observação pode fazer sorrir ou chorar. Mas o que importa realmente é aprendermos a trazer Deus por dentro de nossas vidas, pois este é o único modo de resolvermos os problemas do mundo.


Espírito Deolindo Amorim
Médium Elzio Ferreira de Souza

Sobre artigo Boletim 367 de Ademir Xavier, Elzio Ferreira de Souza, Brasil

Élzio comenta o artigo anterior


Caro Iglesias
Recebi e agradeço a remessa do boletim 369.
Estive lendo o Boletim do aniversário do GEAE e achei o trabalho do Aldenir bem feito, apesar do toque acadêmico da sigla. Há muitos anos escrevi no Mundo Espírita sobre o assunto, e estive retomando agora ao mesmo, mas acabei nao mandando para publicação na F.E. por causa da extensão. Tenho que avaliá-la primeiro.Anoto o seguinte:
1a - A primeira coisa que notamos é que o CCU foi uma descoberta inteligente de Kardec diante do dificílimo problema da autenticidade das mensagens dos Espíritos. Assim sendo, ele não é resultado do ensino dos Espíritos e, portanto, não pode ser tomado como um princípio da doutrina.
Seria interessante questionar a frase final - A Doutrina só aceita princípios quando revelados pelos Espíritos? Sigamos Kardec, para nao fugir do terreno em que ele tão bem colocou o assunto. Em A Gênese, ele destacou as duas características da revelação - divina e humana. Se os dois trabalhos foram colocados lado a lado, é de esperar-se que os princípios sejam sacados dos ensinos dos Espíritos e da observação dos homens. Os princípios básicos que ele enumerou foram fixados a partir dos ensinos dos Espíritos, mas porque se submeteram ao CCU forte, para utilizar a terminologia adotada. Isto significa que um princípio não é adotado só por ser revelação, mas porque o CCU o fixa. Se utilizarmos o termo princípio em sentido mais amplo, como se faz de um modo geral, para significar o que foi bem estabelecido pela investigação, a conclusão será de que CCU é também um princípio metodológico, que, apesar de algumas idéias desavisadas, ainda é o método mais seguro de depuração ao lado do controle racional, necessário para contrabalançar (Vide o caso dos Messias do Espiritismo na Revista Espírita, idéia que foi espalhada em vários núcleos de modo independente).
Agora bem, uma questão pode ser colocada em face do pensamento de Emmanuel que transcrevo - "Cada individualidade deve alargar o círculo das suas capacidades espirituais, porquanto, poderá, como recompensa à sua perseverança e esforço, certificar-se das sublimes verdades do mundo invisível, sem o concurso de quaisquer intermediários. (destaque nosso - Emmanuel: dissertações mediúnicas, p. 49). Ele deveria estar voltado para as percepções dos rishis (videntes) indianos e de um Chico Xavier, para citar um só exemplo entre nós). Em outras palavras, a revelação não teria uma origem exclusivamente nos Espíritos.
2. A questão dos princípios é interessante. Em Pérolas no Fio, eu anotei 10 (dez) e chamei a atenção de que eram princípios que podem encontrar-se no Hinduísmo. De propósito, a fim de que os confrades pudessem exercer o direito de pensar, não coloquei em que se podia diferenciar as duas doutrinas.
3. Ainda em relação aos princípios, devemos considerar que existem Espíritos que nao admitem o evolucionismo. No tempo de Kardec. E há mais de 60 anos (1937), quando Emmanuel ditou o livro que leva o seu nome, destacou o fato sobre a defesa do fixismo feita por Espíritos estudiosos:
"Se bem haja no próprio círculo dos estudiosos dos espaços o grupo dos opositores das grandes idéias sobre o evolucionismo do princípio espiritual, através das espécies, sou dos que o estudam, atenta e carinhosamente" (p.93)
Isto é interessante porque na quase totalidade dos núcleos se aparecesse um Espírito com tais idéias, será tido imediatamente como um pseudo-sábio. Aliás, podemos dizer que Kardec agiu nesta parte com muito tato, e, embora fosse pessoalmente um evolucionista, até o fim, manteve-se em cautela no enunciar a idéia, pelo menos em relação à evolução espiritual, que ele apresenta como posição defendida pelo filósofos espiritualistas. Este princípio alcançou assim o estado de cidade com os trabalhos de Léon Denis.
4. Escreve Aldenir - "Vejamos um exemplo concreto que nos auxilie nesse ponto. Suponhamos que um certo Espírito proponha uma modificação na lei III de evolução afirmando que a marcha de desenvolvimento do Espírito não é incessante mas que, em determinado ponto de sua vida maior, seja permitido por lei ao Espírito estacionar. Não é difícil ver que semelhante idéia depõe contra vários outros princípios e leva imediatamente a uma contradição com a noção de livre-arbítrio pois, se ao Espírito é possível estacionar, ele não tem, por lei, nenhuma responsabilidade sobre seus atos durante o período de falta de progresso. Essa idéia deve ser rejeitada por estar em contradição com uma série de noções que protegem os fundamentos da doutrina."
Ainda que ele tenha razão em relação à contradição, não me parece seguro que uma tal teoria iria de encontro à noção de livre-arbítrio e de responsabilidade individual durante o período de falta de progresso, porque a) seria exatamente o reconhecimento do seu livre-arbítrio que o permitiria estacionar; b) porque uma decisão livre sendo imputável, a sua responsabilidade pela opção é evidente, se isto causasse algum prejuízo ao sistema estabelecido. Bem, o Aldenir deveria estar pensando, no exemplo, com uma opção que fosse definitiva e irrevogável, pois, no entendimento que temos atualmente, um Espírito pode resolver estacionar e o faz, até que mude de opinião livremente ou que um acréscimo de dor, resultante da violação da lei, leve-o a abandonar a posição conflituosa com a lei.
Bem, meu caro Iglesias, estas são umas pequenas anotações ao trabalho do Aldenir que está muito bem lançado e que faço, no silêncio da madrugada, para manter uma simples conversa.
Com o abraço do
Elzio Ferreira de Souza

Considerações sobre as idéias de verdade e controvérsias em torno dos ensinos dos Espíritos, Ademir L Xavier Jr.




 
"A vaidade de certos homens, que julgam saber tudo e tudo querem explicar a seu modo, dará nascimento a opiniões dissidentes. Mas, todos os que tiverem em vista o grande princípio de Jesus se confundirão num só sentimento: o do amor do bem e se unirão por um laço fraterno, que prenderá o mundo inteiro. Estes deixarão de lado as miseráveis questões de palavras, para só se ocuparem com o que é essencial. E a doutrina será sempre a mesma, quanto ao fundo, para todos os que receberem comunicações de Espíritos superiores1."

1 - Introdução

    Todos aqueles que já tiveram a oportunidade de entrar em contato com as páginas e conceitos espíritas dificilmente deixaram de se perguntar quanto à natureza e a validade de muitas das informações trazidas pelos mensageiros espirituais. Nesse sentido, é relevante se perguntar quanto aos critérios de aceitação dos ensinos espíritas, sobre como deve ser nossa postura diante da propagação, divulgação e grau de validade desses ensinos. Será que um determinado conceito deve ser aceito absolutamente, sem exame algum, com exclusão daqueles que por ventura possam discordar dele? Será que, por outro lado, devemos sempre manter uma postura reticenciosa, como que eternamente aguardando uma última palavra ou, o que seria ainda mais restrito, considerar tais ensinos como meras figuras passadas pelos Espíritos na impossibilidade de nós, os encarnados, estarmos longe de mais do que seria a verdade? Como se dá o consenso ao derredor de um determinado ensino? Tais questionamentos podem parecer supérfluos a uma mente excessivamente prática, mas estão provavelmente na raiz de grandes males que afetaram a humanidade.
    Sem dúvida, diversos estudos foram feitos desde os primórdios do desenvolvimento da doutrina com Allan Kardec em torno da validade e aceitação das teses do Espiritismo. No momento histórico da codificação, diante da exuberância dos fenômenos espíritas (a aparecerem espontaneamente em muitas instâncias simultaneamente), Allan Kardec chegou a formulação do critério da concordância universal dos ensinos dos Espíritos. Em termos resumidos tratava-se da aceitação de uma determinada tese (em sua maioria relacionada aos princípios básicos) quando apoiada maciçamente pelos Espíritos através de diferentes médiuns nos mais variados lugares. Votaremos a esse ponto na Parte 3 deste artigo. Essa idéia lembra vagamente os critérios de aceitação de conceitos e teorias dentro das universidades e institutos de pesquisa científica. Não seria o caso de uma certa idéia ser aceita quando apoiada igualmente por uma variedade de departamentos científicos após, muitas vezes, difíceis e laboriosas experimentações? O mesmo se daria com os princípios espíritas, já que as fontes destes são os Espíritos por meio dos médiums. A comparação não pode ser estendida indiscriminadamente pois não segue daí que toda idéia espírita deva sempre ser sancionada pelo critério da concordância universal da mesma forma que a aceitação de uma certos pontos de uma teoria científica não precisa ser sancionada por um grande número de laboratórios. Isto, porém, é apenas um ponto de semelhança entre o Espiritismo e as doutrinas da ciência comum. A aceitação dos princípios espíritas está baseado também no selo de racionalidade e coerência que ele empresta à sua visão do universo, algo muito em comum com as teorias das diversas ciências que estudam a matéria e suas manifestações.
    Pretendemos aqui enfatizar que tais desenvolvimentos colocam o Espiritismo em uma posição ímpar no cenário das religiões atuais. Para esse fim, é muito interessante recorrermos à história com o intuito de conhecer melhor como eram aceitos e avaliadas as verdades pelos povos antigos. Analisando especificamente a história das religiões (para o mais perto possível do que seria o objeto de estudo do Espiritismo), constatamos o quão difícil e as vezes sangüinolenta pode ser a disputa pela aceitação das idéias religiosas. No caso específico da religião católica - com a qual nos encontramos mais próximos culturalmente - é nítida essa dificuldade. Observando a história da Igreja, vemos como foi constante o interesse do Plano Maior na libertação e engrandecimento da Igreja que, amiúde, se via a braços com discussões muitas vezes estéreis e sem interesse para as sociedades onde floresceram as organizações católicas. A grande conseqüência prática desses debates culminava, muitas vezes, com a morte deliberada de tantos outros que chegaram perto demais da "heresia". Ficou famosa, por exemplo, a chamada controvérsia ariana no começo do Cristianismo. Do historiador católico Eamon Duffy [2] colhemos o seguinte relato:
 ``A consternação de Constantino em face das divisões dos cristãos norte-africanos haveria de redobrar quando, tendo deposto Licínio, o imperador pagão rival no Oriente, ele se mudou para sua nova capital cristã a 'Nova Roma', Constantinopla. Pois as divisões da África nada eram em comparação com a profunda fissura na imaginação cristã que se abrira, no Leste, por iniciativa de Ário, um presbítero de Alexandria famoso por sua austeridade pessoal e pela popularidade entre as freiras da cidade. Ário fora afastado pelo bispo local por pregar que o 'Logos', a Palavra de Deus que em Jesus se fizera carne, não era o próprio Deus, mas uma criatura infinitamente superior aos anjos, embora como eles criada do nada antes do começo do mundo. Ele via em tal ensinamento um meio de conciliar a doutrina cristã da Encarnação com a fé igualmente fundamental na unidade divina. Na verdade, essa idéia privava o cristianismo de sua afirmação central segundo a qual a vida e morte de Jesus tinham o poder de redimir, pois eram ações do próprio Deus. Contudo, as verdadeiras implicações do arianismo não foram compreendidas de pronto, e Ário conseguiu amplo apoio. Mestre de propaganda, angariou a simpatia popular compondo canções teológicas para serem cantadas por marinheiros e estivadores nas docas de Alexandria. Escapando aos salões eruditos, o debate teológico irrompeu nas tavernas e nos bares do Mediterrâneo oriental.''
    Como foi resolveu o problema de Ário ? Na verdade não houve uma solução definitiva. Na época a solução se materializou no concílio de Nicéia (em 325), convocado pelo imperador. Ainda segundo Duffy:
"Nicéia foi o começo, não o fim da controvérsia ariana. A derrota dos adeptos de Ário havia sido imposta por um imperador decidido a resolver rapidamente as coisas. Eles foram silenciados, não persuadidos, e, terminado o concílio, reagruparam-se para contra atacar."
    É fato conhecido de todos que Constantino considerava a emergente fé cristã uma poderosa força de aglutinação do império romano que estava prestes a desmoronar. Por isso ele via com angústia o debate teológico infindável e, por razões práticas, resolveu impor uma solução. A tradição católica (isto é, a convergência da opinião do clero e do laicato crente em torno da interpretação de certos pontos evangélicos a se materializarem como dogmas) foi, portanto, uma lenta e encarniçada construção que se desenvolve até hoje, onde muitas vezes o interesse político e econômico ditou uma clara delimitação entre o que seria a verdade e a heresia. Não foram poucos os movimentos de renovação católicos e de "reforma" (mesmo antes dos protestantes no Século XVI) e, na Idade Média, foram considerados grandes os papas que se dedicaram vivamente a eles [2]. Os que se admiram de semelhantes movimentos na atualidade apenas desconhecem a milenar história da Igreja. Como eram, entretanto, tomadas as decisões em matéria de fé? Onde deveria estar a verdade quando dois partidos rivais se insuflavam defendendo cada um sua própria opinião ? Esta era decidida oficialmente e com esperanças para sempre seja a portas fechadas, seja pela aclamação popular, pelo voto dos bispos (concilium) ou pela vontade do papa. Na prática a Igreja se viu obrigada a revisar constantemente seus pontos de vista sobre conceitos marginais ou centrais à fé católica. É importante ter em mente que a construção de toda Doutrina Católica (e o aparecimento dos movimentos de reforma) se guiou em muito pela necessária manutenção da "pureza doutrinária" da crença em Cristo. Não foi senão em função da sustentação de tal pureza que se ergueram os tribunais crematórios [2] (a Inquisição) por Gregório IX em 1231. Nesse sentido, a Igreja de Roma adquiriu sua fama ao longo do tempo por ter se propagandeado livre da heresia (principalmente diante do cisma com a Igreja grega2) e quardiã "da fé dos Apóstolos".

 
 
 
2 - Exemplo das ciências

     Compreende-se que na nossa vida comum estamos diante de situações que exigem uma posição prática diante dos fatos.
    Quando alguém diz: "fulano é casado mas tem uma amante mais velha", em geral, a primeira atitude não é a de formulação de teorias que justifiquem ou não a aceitação dessa "verdade". Porque a verificação dela é coisa tão ordinária quanto o próprio fato, sua aceitação é muito simples. Não se dá o mesmo, porém, com certas noções e concepções do mundo que nos cerca. Muito menos com aquelas que dizem respeito à Doutrina Espírita. Mais uma vez recorremos a exemplos simples da ciência. A afirmação ¨a Terra gira com movimento circular em torno do Sol¨  parece, se aplicarmos o critério de aceitação vulgar, uma afirmação livre de ambigüidades.
    Nossas mentes formam instantaneamente uma idéia perfeitamente clara de seu significado. Por mais incrível que pareça, no entanto, sua validade não pode ser inferida da mesma forma como no exemplo de frase anterior. Ela não era nem um pouco válida aos povos antigos, porque não era bem isso que eles constatavam quando viam o Sol se levantar e se por todos os dias, em aparente movimento circular ao redor da Terra. Ela foi a própria expressão da verdade para Nicolau Copérnico (1540) na sua nova formulação do sistema do Mundo. Para ele, a Terra sim girava circularmente em torno do Sol.
    Ela deixou de ter validade para astrônomos posteriores, em particular Johannes Kepler (1630) que descobriu que o movimento, de fato, não era circular mas sim elíptico "com o Sol ocupando um dos focos da elipse".








 
    Essa última conclusão de Kepler deixou de ser válida com Isaac Newton (1670) e sua teoria da gravitação universal
    Para Newton (assim como para toda mecânica clássica que ele fundou), o movimento só seria elíptico se no Universo somente o Sol e a Terra existissem. Desde que há outros corpos (não podemos nos esquecer da Lua) o movimento passa a ser "perturbado". Muito aproximadamente a Terra giraria descrevendo uma "roseta" ao redor do Sol por causa do "movimento de precessão dos ápsides3" da órbita descrita por ela. Em termos exatos se, porém, no Universo, existisse mais um corpo além da Terra e do Sol, o movimento daquela jamais seria descrito de uma maneira simples. Mais uma vez, porém, essa afirmação deixou de ser válida para Albert Einstein (1905), que descobriu efeitos "relativísticos" não desprezíveis.

    Para Einstein, ainda que não existisse nenhum outro corpo no Universo mas somente a Terra e o Sol, ainda assim o movimento seria o de uma roseta com uma precessão dos ápsides extremamente lenta para a Terra. A existência de outros corpos não alteraria muito a descrição de Newton, embora o movimento se tornasse ainda mais complexo. Tal exemplo nos mostra o quão difícil é a descrição da "verdade" relacionada ao objeto de pesquisa da ciência ordinária, a matéria. A lição que se tira não é a de que certa concepção anterior tenha deixado de ser válida (decretada como "herética" na visão por dogmas) . Ao contrário, as construções científicas presentes fundamentam-se explicitamente naquelas do passado. Para nós a memória dos antigos astrônomos deve ser tão venerável quanto a dos mais recentes. Mesmo hoje em dia, se quisermos construir um relógio do Sol por exemplo, podemos perfeitamente usar os conceitos antigos que consideravam o Sol como girando em torno do Terra. Existe erro nisso? Diante de nossa presumível ignorância com relação às questões ainda abertas nas ciências, estamos certamente tão perto da verdade quanto eles. A verificação desse fato não pode ser motivo porém para escândalos, nem para um descrédito para com as ciências. O que se faz necessário é, pois, uma nova concepção de aceitação da verdade, bem como critérios de compreensão das explicações científicas. A chave que permite essa nova compreensão pode ser conseguida estudando-se um pouco a história das ciências assim como os mecanismos pelos quais as concepções científicas surgiram e têm operado [3].
    As teorias científicas representam as construções de raciocínio onde essas concepções científicas se estabelecem. Não é senão pelo fato de tais conceitos estarem harmonicamente integrados às teorias que sua aceitação torna-se válida. Além disso, as teorias devem fornecer uma visão consistente do universo onde tal fenômeno ocorre. Isso implica não só em explicar aquele fenômeno particular, mas também possíveis efeitos a ele correlacionados. Uma excelente teoria deve além disso fornecer as bases para a previsão de fenômenos desconhecidos. Portanto, não é a autoridade de um ou de outro cientista que fundamenta a ortodoxia nas ciências (com sentido muito diferente daquele usado pelas religiões clássicas). Nunca a verdade científica haverá de ser decidida em reuniões a portas fechadas, pela deliberação de conselhos ou organizações ou baseando-se no palpite dos cientistas mais notáveis. É verdade que a opinião de um grande cientista a favor de uma certa teoria particular pode pesar muito na orientação das pesquisas futuras, mas tal opinião nunca constituirá a teoria.

3 - Analisando o critério da concordância universal.

    Se na descrição de um simples fenômeno material somos obrigados a fazer grandes concessões de tolerância para com aqueles que sustentam opiniões diferentes, imaginemos por um momento a situação com os fenômenos e princípios espíritas. Isso é particularmente forte se considerarmos que o objeto de estudo do Espiritismo não está sujeito à apreensão direta pelos sentidos humanos ordinários nem por quaisquer "aparelhos de medida". Isso não significa, porém, que esses fenômenos estão condenados eternamente a serem inexplicáveis, muito menos que seremos sempre impotentes diante deles. O que se passa com o Espiritismo (que resulta em sua independência das ciências comuns) é que ele trata de fenômenos pelos quais as ciências não se interessam. As ciências estudam a matéria e o Espiritismo oespírito. Para assegurar o progresso principalmente moral do ser humano, aguardou-se o lento mas inexorável avanço da intelectualidade humana e o conhecimento espírita foi e tem sido revelado, em função direta dessas mesmas necessidades morais. Diante das dificuldades humanas de se conhecer a verdade (como exemplificadas acima), não é difícil concluirmos que existem claramente limites à revelação espírita.
    A fonte primordial da informação espírita são os Espíritos. Mas como se dá a aceitação dessas informações por eles propostas4? No que diz respeito aos princípios da doutrina, existe um critério explícito. Vamos aqui analisar brevemente o famoso critérioda concordância universal (CCU) . A referência principal sobre esse assunto é a Introdução ao O Evangelho segundo o Espiritismo [4], Parte II, "Autoridade da Doutrina Espírita"*. Todas as citações de Kardec feitas a seguir foram extraídas dessa referência. Kardec aponta duas grandes razões para a existência de um critério de aceitação das informações espíritas:    (a) "Garantia para a unidade futura do Espiritismo", com anulação das teorias contraditórias (Parágrafo 14).
    (b) "Garantia contra as alterações que poderia sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio ou acomodá-lo à vontade." (Parágrafo 16). Tal critério protege assim os fundamentos do Espiritismo contra enxertias, sejam da parte dos próprios Espíritos (menos esclarecidos) ou dos encarnados.
 
    A primeira coisa que notamos é que o CCU foi uma descoberta inteligente de Kardec diante do dificílimo problema da autenticidade das mensagens dos Espíritos. Assim sendo, ele não é resultado do ensino dos Espíritos e, portanto, não pode ser tomado como um princípio da doutrina. Analisando a referência citada acima, podemos dizer que o critério tem 3 principais fundamentos.
    O Espiritismo não é uma construção humana, ou seja, não é resultado de uma simples teorização em torno de observações e análise de fatos.
    Os Espíritos têm ampla liberdade de comunicação, o que anula a possibilidade de privilégios na concessão da informação espírita (o que, do contrário, tiraria o caráter "natural" da revelação espírita).
    Os Espíritos têm diversos graus de evolução. Se a fonte de informação espírita são os Espíritos, a validade das mesmas depende do grau de lucidez que eles possuem em relação aquilo que pretendem informar. Disso vem que nem todos os Espíritos estão igualmente aptos a servir de fonte de informação e daí imediatamente, a necessidade de uma seleção das mesmas.
    Por razões didáticas, podemos dizer que os três fundamentos acima possibilitam enunciar o que chamariamos de "CCU fraco":
Uma garantia existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente.
    Existem entretanto condições operacionais (em relação ao caráter das mensagens) para que o CCU seja válido. Essas por sua vez se dividem em dois tipos: condições gerais e condições específicas. São condições gerais:
    - "Tudo o que seja fora do âmbito exclusivamente moral" (Final do Parágrafo 6)
    - Comunicações que tratem dos fundamentos doutrinários: "Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários" (Parágrafo 9).
    Ao mesmo tempo, são condições específicas (ver Parágrafo 8):
    - que um só médium receba comunicações de diversos Espíritos;
    - que vários médiums diferentes (em um certo grupo ou em vários lugares) recebam comunicações de diversos Espíritos.
    Ocorre aqui porém que se tanto na situação (I) como em (II) houver a incidência de obsessão, a aceitação do CCU fraco não é possível. Disso resulta o que chamaríamos de CCU forte:
 "Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares". (Parágrafo 9).
    Ao CCU fraco é assim acrescentada a exigência de repetibilidade geográfica e mediúnica de uma certa informação. Poderíamos ainda adicionar uma necessidade de confirmação temporal da informação, isto é, de que uma dada tese referente a um princípio se confirme ao longo do tempo. Isso ocorreu diversas vezes durante a codificação. Do ponto de vista histórico, Kardec parece também ter sido o único a aplicar o CCU forte:
"Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condição de observar sobre que princípio se estabelece a concordância".(Parágrafo 13).
    A razão de ser do CCU fraco é que ele parece ser válido desde que os médiuns não estejam sob efeito de Espíritos mistificadores (obsessão etc). A exigência do CCU forte foi cumprida plenamente no momento da codificação por conta da enorme abundância de fenômenos espontâneos ocorridos na época. As condições gerais enunciadas por Kardec (condições A e B) são de crucial importância para se entender a aplicação do CCU. De fato, não tem muito sentido exigir um critério de concordância (seja por vários médiuns ou através várias instâncias temporais) com as comunicações pessoais de Espíritos familiares por exemplo. Seria mesmo ridículo exigir que os Espíritos se comunicassem por médiuns diferentes após fornecerem muitas vezes provas indubitáveis de que são eles mesmos que se apresentam a determinado médium. As especificidade da mensagem dita assim o grau de recorrência ao CCU. O grau de obviedade com que constatamos a concordância dos Espíritos esclarecidos em relação às questões morais é o que fundamenta a condição geral (A). Suprimir tal condição é equivalente a dizer que o CCU (na forma forte) sempre foi operacional com relação às questões morais. Parece assim ser importante compreender exatamente o que se entende por pontos fundamentaise pontos secundários, coisa que procuraremos fazer a seguir.

    4 - O que são pontos fundamentais e o que são pontos secundários. Exemplos.

    Por Doutrina Espírita entendemos o conjunto de princípios fundamentais que sistematizam o Espiritismo, as regras de aplicação desses princípios às diversas situações e fenômenos em que ele representa uma alternativa lógica e racional de explicação. Também a essa doutrina estão associados os diversos conjuntos de preceitos e regras éticas que caracterizam o espírita na mais pura acepção da palavra. Por promoverem o progresso da alma humana, tais regras fortalecem as relações deste com a Divindade, de onde deriva imediatamente o aspecto religioso do Espiritismo.
    De modo resumido os princípios fundamentais do Espiritismo são:
    Existência de Deus. Deus aqui entendido como um ser existente de toda eternidade, sem princípio nem fim, todo poderoso e bom. Sem tentar descrever o impossível, tais atributos são, digamos, os mínimos necessários para a noção da Divindade.
    Existência do Espírito. O Espírito aqui é o princípio inteligente independente da matéria, a constituir um outro princípio. Por ser independente da matéria, o Espírito não sucumbe nem desaparece frente às transformações desta, de onde se tem a noção da imortalidade do ser.
    Evolução do Espírito. A medida que o tempo transcorre, o estado que caracteriza o Espírito se transforma. Esse estado dá, por exemplo, as características do Espírito5. Da faculdade que o Espírito tem de interagir com a matéria, ele passa por transformações que modificam sua personalidade e características. Essa evolução leva ao aprimoramento moral do ser e de sua inteligência. No homem, o período de tempo necessário para o aprimoramento é muito maior que o tempo de vida médio de sua vida material. Daí segue, como corolário desse princípio, a idéia de reencarnação.
    Comunicabilidade dos Espíritos. É possível ao Espírito, desprovido da parte material, entrar em comunicação com o mundo material por meio de pessoas dotadas de uma faculdade especial chamada mediunidade.
    Pluralidade dos mundos habitados. No Universo são inúmeros os mundos onde a vida é abundante, e os Espíritos, segundo semelhantes princípios, evoluem e têm sua existência mais ou menos material de acordo com o progresso atingido.
    Os princípios fundamentais estão todos eles contidos nas obras básicas editadas por Kardec. Essas obras também trazem idéias secundárias que auxiliam a explicação espírita do mundo segundo os princípios fundamentais. Além disso, a vasta literatura espírita contemporânea também contém inúmeras obras que desenvolvem substancialmente a aplicação dos princípios fundamentais e, porque não dizer, propõem princípios secundários novos. Esse fato é permitido pelo caráter progressista da doutrina, e os que teimam em não aceitá-lo6 estão, de fato, atrasando a marcha desse progresso. Vejamos um exemplo concreto que nos auxilie nesse ponto. Suponhamos que um certo Espírito proponha uma modificação na lei III de evolução afirmando que a marcha de desenvolvimento do Espírito não é incessante mas que, em determinado ponto de sua vida maior, seja permitido por lei ao Espírito estacionar. Não é difícil ver que semelhante idéia depõe contra vários outros princípios e leva imediatamente a uma contradição com a noção de livre-arbítrio pois, se ao Espírito é possível estacionar, ele não tem, por lei, nenhuma responsabilidade sobre seus atos durante o período de falta de progresso. Essa idéia deve ser rejeitada por estar em contradição com uma série de noções que protegem os fundamentos da doutrina.
    Tomemos agora um exemplo de uma controvérsia no movimento espírita que ilustra bem as dificuldades de compreensão dos princípios espíritas e do ensino dos Espíritos. Trata-se da famosa proposição do elevado Espírito Emmanuel sobre as "almas gêmeas" no seu livro O Consolador [5]. Antes de tudo, conviria considerar uma afirmação desse Espírito contida logo na introdução ("Definição") de seus livro:
  "Alem do mais, ainda nos encontramos num plano evolutivo, sem que possamos trazer ao vosso círculo de aprendizado as últimas equações, nesse ou naquele setor de investigação e de análise. É por essa razão que somente poderemos cooperar convosco sem a presunção da palavra derradeira".
    Na questão 298 de "O Livro dos Espíritos" [1], Kardec questiona os Espíritos sobre a idéia das almas gêmeas, entendidas como dois seres unidos desde sua origem e predestinados a se encontraremfatalmente algum dia. Tratava-se, sem sombra de dúvida, de um ponto secundário, já que os princípios fundamentais nada dizem sobre a criação dos Espíritos (ver questão 78 de "O Livro dos Espíritos"). Além disso, a idéia da almas gêmeas não contradiz nenhum outro ponto fundamental. Em "O Consolador", Emmanuel por diversas questões (desde 323-328, "Terceira Parte", "Amor") reafirma a idéia das almas gêmeas, entendidas como seres que se buscam na Eternidade e cuja existência propicia o progresso aos Espíritos, já que estes, quando separados e caídos no crime anseiam por se encontrar, constituindo isso um incentivo ao seu progresso. Emmanuel, de fato, reconhece sua ignorância não só em relação à criação dos Espíritos como também sobre como se estabelece o vínculo afetivo entre eles:
 "Para todos nós, o primeiro instante da criação do ser está mergulhado num suave mistério, assim como também a atração profunda e inexplicável que arrasta uma alma para outra, no intuito dos trabalhos, das experiências e das provas, no caminho infinito do Tempo."
    Entretanto, inquirido a examinar melhor seus pontos de vista, Emmanuel humildemente pede seja mantido o texto original, chamando a atenção para a complexidade do assunto. Esse Espírito apenas queria dizer que ainda estamos longe de ter a pretensão à verdade de um tem tão complexo. Por outro lado, se os Espíritos que auxiliaram Kardec, em diversos pontos de "O Livro dos Espíritos", afirmaram que a criação dos Espíritos está mergulhada em um profundo mistério, como poderiam ter dado uma resposta definitiva à questão das almas gêmeas? Parece-nos que, nesse caso, bem como em muitos outros, eles haveriam de estar igualmente longe de dar uma "resposta derradeira". De qualquer forma, o CCU na forma forte não pode ser invocado nesse caso por não se tratar de um ponto fundamental. Podemos tomar a proposição de Emmanuel como uma opinião pessoal sua, aliás em conformidade com o que vimos que esse Espírito diz na introdução de "O Consolador". Entretanto, certos setores do movimento espírita extremamente ligados à letra e desatentos às sutilezas das idéias de verdade e ensino dos Espíritos (a se aplicarem igualmente para as explicações das coisas materiais), tomaram esse caso como mais um exemplo a depor contra a "pureza doutrinária" do Espiritismo que se imagina poder ser imposta a todo custo.

5 - Conclusões
 
    Não foi senão por uma longa e difícil marcha que a Humanidade, pela colaboração de inúmeros luminares da cultura, inteligência e moralidade, conseguiu compreender que a noção de verdade só pode ser formulada dentro de bases estritamente relativas. Acompanhando o progresso das religiões e das ciências (mais notadamente dessas últimas) chegou-se a conclusão que as concepções a respeito das coisas e dos fenômenos do Mundo tem uma grande dependência com as épocas, recursos de pesquisa e tendências culturais dos indivíduos. No estágio onde nos encontramos jamais poderemos aspirar à verdade absoluta.
 
    Dentro da Doutrina Espírita, tais conclusões são igualmente válidas. Elas servem ainda mais para reforçar definitivamente nossa extrema pequenez diante do universo em que vivemos, a idéia de que nossas pretensões são ínfimas. Alias essa já é a opinião emitida por Espíritos elevados quando inquiridos sobre nosso tamanho nesse universo. Forma-se imediatamente assim a importante conclusão da inutilidade de quaisquer querelas que venham se formar ao redor das concepções espíritas, sejam elas fundamentais ou secundárias. Se nos é possível fechar a correspondência com o passado, digamos que a única "heresia" que se pode suspeitar hoje em dia é a da sustentação de tais querelas contra nossos companheiros muitas vezes dentro do próprio movimento espírita. Ela é antiética e depõe contra todos os princípios evangélicos que o Espiritismo sustenta abertamente.
 
    Por outro lado, o sentimento de impotência diante da verdade com relação a muitas questões profundas, não invalida em nenhum ponto os efeitos inquestionavelmente benéficos em nossas vidas que a aceitação e prática dos princípios espíritas - revelados na medida que podemos compreender - podem gerar. De fato, estamos talvez muito distantes de compreender por bases racionalmente sólidas princípios como o do amor, caridade e misericórdia. A própria evolução onde estagiamos hoje dá-nos muito mais capacidade para sentir esses conceitos.
 
    Há uma base sim muito sólida onde se estabelecem os princípios e desenvolvimentos espíritas. Para conquistá-la, o espírita deve abraçar com zelo o estudo da doutrina e desvencilhar-se um pouco de velhas concepções. Isso significa avaliar coerentemente o conteúdo dos novos ensinos, compará-los aos antigos, notar as sutilezas por detrás das novas noções aparentemente tão simples. E nunca esquecer também que o mundo onde vivemos é de fato muito maior que nossas vãs concepções podem imaginar.

6 - Bibliografia
[1] Allan Kardec, "O Livro dos Espíritos", 71 edição, Federação Espírita Brasileira (1991).
[2] Eamon Duffy"Santos e Pecadores, a História dos Papas", Cosac & Naif Edições Ltda, São Paulo (1998).
[3] Silvio Seno Chibeni, "A Excelência Metodológica do Espiritismo II", Reformador, Dezembro de 1988, pp. 373-378 (FEB).
[4] Allan Kardec, "O Evangelho segundo o Espiritismo", 104 edição, Federação Espírita Brasileira (1944)
[5] Emmanuel, "O Consolador", 4 edição, Federação Espírita Brasileira.